Lenira Rocha Peres Mercadante
“Querer que o outro seja nossa imagem e semelhança mata o relacionamento humano”. (Armando Sérgio Mercadante)
O dia amanheceu com sol, mas um pouco frio. Levantei, tomei o café da manhã e me aprontei para ir ao dentista. Sai de casa e fui caminhando. Apressei os passos, atravessei a rua e segui pela calçada. Deparei-me com um mendigo que estava sentado debaixo de uma marquise. Seu aspecto causava tristeza: fisionomia de pessoa perdida, olhos arregalados e tristes, barba e cabelos grandes. Seus trajes de cor preta estavam sujos. Ao seu lado algumas sacolas, latas e um cobertor. Olhei para ele e rezei em pensamento: que Deus tenha piedade e misericórdia desse homem. Naquele momento nada pude fazer de concreto por ele.
Continuei pensando. Uma criança quando nasce, na maioria das vezes, é uma alegria para a família. E este homem, como muitos outros, o que teria acontecido para estar num estado tão deprimente, tão desumano? Como disse Cora Coralina “quebrando pedras e plantando flores” segui pela avenida, onde o movimento e o barulho eram grandes. A multidão espantava qualquer um. O número de pessoas cresceu de forma assustadora! Umas com expressão leve, outras cansadas e desanimadas, algumas sorrindo e outras ora apressadas, ora vagarosas.
Quando transitamos de um lado para o outro, às vezes vemos e não enxergamos ninguém. São travessias de desconhecidos. É o terrível anonimato das grandes cidades. Ao passo que quando encontramos pessoas conhecidas elas se transformam. Sorrisos, dizeres, acenos, um gesto que seja e aí está o significado da vida.
Imagina-se o encontro. Aquela mulher que vai na multidão é uma a mais. Mas ela chega em casa e encontra alguém que dá significado à sua existência porque sente a sua ausência. Sentir a ausência de alguém é dar sentido à sua existência. É a alegria de chegar em casa e saber que alguém está a sua espera. E chegar e não encontrar ninguém esperando é dor doída demais. É sentir-se esquecido e desprovido de cuidado. É estender as mãos para ninguém.
O encontro com o outro ou até mesmo os cantos que escolhemos para descansar de nossas andanças alivia. O coração sente a ausência e sentimos também a dor.
Como é bom voltar! Voltar para casa e encontrar os que amamos e que nos esperam e que nos amam também! Voltar a terra natal, à consciência...
Temos o poder de dar significado às pessoas que amamos e de tirá-las do meio da multidão e ajuda-las fraternalmente. Pessoas caídas que precisam de uma mão, pessoas fragilizadas precisando de uma palavra. E temos tantas e a usamos com tanto desperdício!
Em determinados momentos da vida torna-se mais significativo um aperto de mão, um abraço solidário, a cumplicidade diante da dor, do que palavras.
Carlos Drumond de Andrade, o nosso poeta maior, em sua sabedoria recomendava que antes de escrever os poemas é preciso conviver com eles. Antes do nascer da palavra há sempre um sabor de silencio que precisa ser sorvido. A boa palavra se alimenta de pausas e silêncios. Sócrates propunha: cada idéia tem que ser gestada antes de nascer.
Procuramos nossos companheiros como Drumond. “O presente é tão grande, não nos afastemos. Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas”.
É preciso também nos dias de hoje, maior tolerância com os limites humanos. Temos medo das imperfeições e evitamos o outro no momento de sua fragilidade. Espera-se do outro que corresponda às nossas expectativas ao invés de vermos suas possibilidades. Queremos que ele não contrarie nossa vontade e nossos desejos. Ainda não aprendemos a conviver com as diferenças.
Encontrar valores requer paciência com os limites humanos. É isso que dá sentido a nossa existência.
Só se ama verdadeiramente depois de ter esbarrado nas imperfeições do outro e de ter conhecido sua pior faceta e mesmo assim continuar reconhecendo-a como parte a que não posso renunciar. Só o amor me faz conviver com o precário da vida, com a indigência humana.
O medo de não ser amado é recorrente em um mundo pouco preocupado com os sentimentos alheios.
Não há tempo para gastar com pessoas complicadas. Quem quer ensinar o pescador a pescar homens? Não há tempo nem disposição. São as margens que mais aparecem enquanto o coração se esvazia.
O banquete está posto, mais é também para os miseráveis. Salvar é retirar o outro de um lugar desfavorável e oferecer-lhe a oportunidade de superar o que lhe condena.
Santo Agostinho dizia que quem quisesse fazer o correto deveria primeiro amar, depois fazer qualquer coisa. Mas amar verdadeiramente. “Ama e faça o que quiseres”.
O amor não é construído somente de bons sentimentos. Como humanos experimentamos também os sentimentos que não são altruísticos como: ferir e ser ferido, ter e provocar raiva, ignorar e ser ignorado. Tudo isto nos fortalece na construção do aprendizado do amor. Sentindo todos esses sentimentos contraditórios e os superando.
Como diz Cora Coralina “quebrando pedras e plantando flores”, vamos de mãos de dadas conforme Drumond. A caminhada será mais leve por mais estreito e pedregoso que seja o caminho.
Nota: publicado no fanzine Mar de Morros.
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